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Consumo de agrotóxicos no Brasil: elevado ou adequado?


Por Décio Luiz Gazzoni, Engenheiro Agrônomo, pesquisador da Embrapa Soja, membro do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS) e da Academia Brasileira de Ciência Agronômica

 Uma das frases lapidares de Joseph Goebbels, o Ministro da Propaganda de Hitler, é Eine tausendmal erzählte Lüge wird zur Wahrheit (Uma mentira contada mil vezes vira verdade, em livre tradução). O resultado da aplicação desse princípio na Alemanha está registrado na História, na ascensão do regime nazista e na II Guerra Mundial.

Saltemos quase 100 anos, para 2024. Uma consulta no Google, usando as palavras “Brasil; campeão; agrotóxicos” vai recuperar milhares de links, que têm em comum a asseveração que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Via de regra essa afirmativa é lastreada ou no valor de mercado (venda) dos pesticidas, ou no volume utilizado.Isso pouco ou nada significa, porque o valor de venda não é comparável entre países, devido às diferenças de taxa de câmbio, fretes, legislação tributária, logística, intermediação, subsídios, etc. Igualmente, o volume utilizado é fortemente dependente da localização do país (clima frio, temperado ou tropical), do tamanho de sua agropecuária, da diversidade e severidade de incidência de pragas, do custo do pesticida, entre outros aspectos. Destarte, é importante analisar essa questão em função dos fatores condicionantes do uso de pesticidas. 

O exemplo dos automóveis

Para ilustrar a questão, vamos usar automóveis como exemplo. O tamanho da frota de um país é função de sua população, da renda per capita, do hábito (cultura) de usar transporte próprio, além da disponibilidade e qualidade do transporte público. Já o número de veículos per capita é função direta da renda per capita da população, independendo de seu tamanho e com pouca ou nenhuma influência do transporte público.

A Tabela 1 mostra os 10 países com a maior frota de veículos do mundo, seguida pelo número de veículos por 1.000 habitantes e respectiva posição no ranking mundial, por este critério. A Tabela 2 inverte os índices em relação à Tabela 1, ranqueando os países pelo número de veículos por 1.000 habitantes, seguido pelo tamanho da frota e sua posição no ranking global, por este último critério. 

Tabela 1.

Dez países com maior frota de veículos.

Posição País

Frota (milhões)

Veículos/1.000
habPosição

China

329231942 

EUA

30590073

 Japão

102810124 

Brasil

88400665 

Índia

76571566 

Alemanha

55655317

 Rússia

53361748 

França

52780189 

México

493707010 

Itália

4575520

Fonte: Link

  Tabela 2.

Dez países com maior número de veículos por 1.000 habitantes.

Posição País

Veículos/1.000 hab

Frota (milhões)

Posição

1 Gibraltar1.1440,051742 
Guernsey1.3650,091633 

San Marino1.3000,041764 

Liechtenstein1.1930,051755

 Andorra1.0500,081646 

Mônaco9100,041807 

EUA90030528 

Canadá87034129

 Israel86083410 

Austrália8402417

Fonte: Link 

Uma simples observação mostra que, com exceção dos EUA, os países não se repetem nas duas tabelas. A explicação é simples: a renda per capita – que é a variável diretriz para maior número de veículos por 1.000 habitantes – é muito maior em países menos populosos. Por sua vez, países mais populosos – que é a variável diretriz para maior frota – estão inversamente associados com renda per capita elevada.

Usamos o exemplo dos veículos para chamar a atenção para a importância de levar em consideração as condicionantes de um índice, para buscar aquele que melhor expressa a realidade, o que é válido para qualquer análise, incluindo consumo de pesticidas.

As estatísticas

Dessa forma, os aspectos primordiais a considerar para verificar se um determinado país está fazendo uso excessivo ou adequado de pesticidas é a área agrícola utilizada, o volume da produção e sua participação no mercado internacional. A Tabela 3 mostra os maiores produtores agrícolas do mundo, conforme o valor da sua produção; a Tabela 4 mostra a área utilizada para agricultura; a Tabela 5 o valor das exportações agrícolas e a Tabela 6 o superávit agrícola, ou exportação liquida.

 Tabela 3.

Maiores produtores agrícolas

País

US$ milhões

China1.140
Índia906

Estados Unidos829

Brasil573

Rússia500

França420

México400

Japão390

Alemanha360

Canadá350

Fonte: Link 

  Tabela 4.

Países com maior área cultivada

PaísMha

Índia176

EUA168

Rússia126

China148

Brasil80

Canadá52

Austrália49

Indonésia48

Nigéria41

Fonte: Link 

 Tabela 4.

Maiores exportadores agrícolas

País ou blocoUS$ bilhões

Europa799

Estados Unidos222

Brasil148

China103

Canadá91

Indonésia69

Austrália56

Argentina55

Índia55

México53

Fonte: Link 

  Tabela 5.

Maiores superávits agrícolas

País ou bloco

US$ bilhões

Brasil72

Europa35

Argentina34

Nova Zelândia20

Tailândia19

Austrália18

Ucrânia17

Indonésia11

Canadá9

México9

Fonte: Link 
 
Novamente percebe-se que a relação de países é muito variável, em função do índice adotado. O ranking de maiores produções não coincide com maior área cultivada, porque a variável produtividade – e o uso de tecnologia adequada – é o fator que mais influencia essa associação.Igualmente, maior produção ou área não significa maior exportação, porque há variáveis intervenientes que são decisivas, como, por exemplo a competitividade. Do mesmo modo, os maiores exportadores líquidos (exportações agrícolas menos importações do setor) não estão exclusivamente relacionados com a produção, área ou mesmo com exportação total. 

Uso de pesticidas

Para efetivamente entender se o nosso país está usando pesticidas na medida da necessidade, ou seja, em função da produção, da área, das condições para desenvolvimento de pragas, da sua diversidade e intensidade de ataque, é necessário cotejar o seu uso com esses fatores

Para tanto vamos usar os números oficiais da Food and Agriculture Organization Link cuja base de dados está atualizada até 2022.A primeira estatística que utilizaremos é a quantidade usada por pais. Apesar de usarmos o valor constante na base da FAO, é mister considerar que nem todos os produtos arrolados são pesticidas, na acepção mais restritiva, pois inclui adjuvantes, reguladores de crescimento, rodenticidas, desinfetantes, entre outros.

Considere-se, igualmente, que nem todo o pesticida que consta da base é de uso agrícola, porque há outros usos, como domissanitários ou em saúde pública – países tropicais utilizam volume apreciável de pesticidas para controlar vetores de doenças. Os dez países listados com maior uso de pesticidas na base da FAO (2020) são apresentados na Tabela 6. 

Tabela 6.

Consumo de pesticidas

Pais toneladas

Brasil801

EUA468

Indonésia295

Argentina263

China236

Vietnam162

Canadá98

Rússia97

Colômbia78

França68

Austrália60

Nigéria58

Japão50

Alemanha48

Itália44

Espanha44

África do Sul42

Índia40

Filipinas38

 A primeira consideração é óbvia: quanto maior a produção agrícola de um país, tanto maior será o uso de insumos, máquinas e implementos. O que inclui pesticidas. Uma derivada é que quanto mais alta a produtividade de um cultivo, a princípio, também aumenta a necessidade de uso de pesticidas.Também deve ser considerada uma diferença regional muito importante.

Países frios ou temperados, que tem uma janela de cultivo estreita (normalmente um único cultivo/ano, com duração máxima de cinco meses), têm muito menos problemas de pragas que países situados nas faixas tropical e subtropical do planeta. Países na faixa tropical do planeta se caracterizam por sistemas de produção com dois a três cultivos por ano, normalmente ocupando quase integralmente os doze meses.

Dessa forma, não é nenhuma surpresa o Brasil ser o país que lidera a lista de consumo de pesticidas, pelo volume da sua produção, pela área utilizada e por ser o único país grande produtor agrícola do mundo situado na faixa tropical do planeta, aquela muito mais sujeita ao ataque de pragas.

 Pesticidas e área agrícola

Destarte, é muito mais lógico utilizar índices que levem em consideração alguns dos fatores acima, para ponderar o uso de pesticidas, em função do tamanho do agronegócio de um pais.Dois deles são muito utilizados internacionalmente. O primeiro calcula quanto de pesticida é utilizado por unidade de área dedicada à agricultura.

Assim, divide-se o total referido na Tabela 6 – mesmo sabendo que nem todo o volume é de pesticida stricto sensu, e nem todo é utilizado na agricultura – pela área total de produção agrícola do país. Os resultados são apresentados na Tabela 7.Como a tabela relaciona os 20 países com maior consumo de pesticidas por unidade de área cultivada (hectare), o Brasil não aparece na lista. Ele está situado na 26ª. colocação, com uso de 12,6 kg/ha.

 Tabela 7.

Consumo de pesticidas por unidade de área

Paískg/ha

Antígua e Barbados36,6

Qatar35,1Brunei29,0

São Vicente e Granadina28,6

Ilhas Turks e Caicos28,0

Santa Lucia27,6Trinidad e Tobago25,0

Tokelau23,8

Ilhas Maldivas23,7

Andorra23,6

Saint Kitts e Nevis19,9

Ilhas Seicheles19,5

Suriname18,7

Nauru17,9

Costa Rica17,5

Granada17,1

China16,7

Bahamas16,2

Colômbia16,0

Israel14,7 

O segundo índice utilizado internacionalmente coteja o volume de uso de pesticidas com o valor da produção agrícola de um país. Isso permite colocar em um mesmo índice produtos tão díspares quanto grãos, frutas e hortaliças. O índice é apresentado na Tabela 8. Novamente o Brasil não aparece na relação da Tabela, por estar situado na 25ª. posição, com o uso de 3,13g de pesticida por dólar do valor de sua produção agrícola. 

Tabela 8.

Consumo de pesticidas por valor da produção

Paísg/US$

Maldivas10,32

Ilhas Seicheles9,36

China8,96

Santa Lucia8,92

Nauru8,69

Qatar7,81

Saint Kitts e Nevis7,79Trinidad e Tobago7,09

Ilhas Cook6,22

Tokelau6,17

Suriname5,50

Belize5,22

Granada5,21

Samoa5,17

Nicarágua3,81

Brunei3,78

Ilhas Faroe3,52

Argentina3,45

São Vicente e Granadina3,44

Botswana3,42

 Conclusão

O Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo, um dos maiores exportadores – sendo o maior exportador líquido de produtos agrícolas. Sua área de produção situa-se integralmente em regiões tropicais e subtropicais, com dois ou três cultivos anuais. Assim, o consumo de pesticidas do país é compatível com essas características, inclusive com índices ponderados inferiores a países onde as pragas agrícolas são muito menos importantes que no Brasil.

O exposto não significa que devemos abdicar da constante de racionalização de uso, em especial com a adoção de métodos sucedâneos aos pesticidas, que produzam os mesmos resultados, com menores custos econômicos e impactos ambientais. O que já está acontecendo no campo, porque o Brasil é o país onde o uso de bioinsumos cresce com as taxas mais altas do mundo, tendo sido superior a 15% na safra 2023/24, comparativamente à safra anterior. 

Sobre o CCAS

O Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS) é uma organização da Sociedade Civil, criada em 15 de abril de 2011, com domicilio, sede e foro no município de São Paulo (SP), com o objetivo precípuo de discutir temas relacionados à sustentabilidade da agricultura e se posicionar, de maneira clara, sobre o assunto.
O CCAS é uma entidade privada, de natureza associativa, sem fins econômicos, pautando suas ações na imparcialidade, ética e transparência, sempre valorizando o conhecimento científico.

Os associados do CCAS são profissionais de diferentes formações e áreas de atuação, tanto na área pública quanto privada, que comungam o objetivo comum de pugnar pela sustentabilidade da agricultura brasileira. São profissionais que se destacam por suas atividades técnico-científicas e que se dispõem a apresentar fatos, lastreados em verdades científicas, para comprovar a sustentabilidade das atividades agrícolas.

A agricultura, por sua importância fundamental para o país e para cada cidadão, tem sua reputação e imagem em construção, alternando percepções positivas e negativas. É preciso que professores, pesquisadores e especialistas no tema apresentem e discutam suas teses, estudos e opiniões, para melhor informação da sociedade. Não podemos deixar de lembrar que a evolução da civilização só foi possível devido à agricultura.

É importante que todo o conhecimento acumulado nas Universidades e Instituições de Pesquisa, assim como a larga experiência dos agricultores, seja colocado à disposição da população, para que a realidade da agricultura, em especial seu caráter de sustentabilidade, transpareça. 
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