Protocolo do Cerrado completa um ano com baixa adesão da cadeia da carne ao compromisso de proteção ao bioma

Relatório do Do Pasto ao Prato retrata o avanço do desmatamento no Cerrado e diz que líderes do varejo e pecuária são essenciais na promoção do documento feito para o bioma
Após um ano do lançamento do Protocolo do Cerrado — conjunto de critérios de compra responsável de gado no bioma —, as ações para a preservação ambiental nesta região ainda são tímidas e insuficientes. De abril de 2024 até hoje, somente cinco frigoríficos aderiram ao documento e, apesar de serem líderes neste segmento, representam apenas um terço (33,6%) da região com perda de vegetação associada à pecuária e 38,8% da capacidade de produção do Cerrado. Isso significa que 2 a cada 3 hectares do bioma seguem desprotegidos pelo compromisso socioambiental do protocolo.
Essas informações fazem parte do relatório “Radiografia da Pecuária do Cerrado”, recém-lançado pela iniciativa Do Pasto ao Prato (dPaP). Além de analisar a atuação de frigoríficos em áreas de desmatamento, o estudo também aborda como as redes de supermercados de norte a sul do país poderiam contribuir para a sustentabilidade do bioma, deixando de comprar a carne de fornecedores em regiões sem nenhum monitoramento.
Hoje, apenas duas redes varejistas – Grupo Pão de Açúcar e Carrefour – aderiram ao Protocolo. Considerando a estimativa da Associação Brasileira de Supermercados (ABRAS), de que o Brasil tem 1.251 empresas supermercadistas, é possível concluir que uma grande fatia do varejo ainda comercializa a proteína bovina sem nenhuma política de rastreamento de seus fornecedores.
Só as vendas do produto nas redes Assaí Atacadista, Mateus Supermercados, Supermercados BH, Irmãos Muffato e Atacadão Dia a Dia poderiam estar associadas a uma área de 83 mil hectares de desmatamento do Cerrado para fins de pastagem. Isso porque essas marcas compram de produtores localizados em zonas de elevada incidência de desmatamento e sem nenhum compromisso de monitoramento ou divulgação pública dos resultados de auditoria.
Para identificar a relação entre as empresas da cadeia da pecuária com as fazendas e produtores que atuam em áreas desmatadas, o relatório utilizou fontes oficiais de informação, como o PRODES Cerrado, o MAPA e o MapBiomas. Já os dados da exposição do varejo ao risco de adquirir carnes de zonas de desmatamento foram obtidos graças ao aplicativo desenvolvido pelo do Pasto ao Prato, colhidos entre os anos de 2021 e 2024, que permite aos consumidores consultar, pelo celular, a origem da proteína bovina no momento da compra dentro do supermercado.
Criado em 2021, para estimular o consumo consciente, o app permite que o usuário descubra essa informação ao escanear o código da vigilância sanitária impresso na embalagem do produto. Quando isso acontece, os dados são processados pelo aplicativo, relacionando o ponto de venda aos processadores daquela carne.
Dari Santos, coordenadora de impacto da iniciativa Do Pasto ao Prato (dPaP), ressalta que alguns varejistas engajados afirmam empregar estratégias internas de segregação de produtos, como reservar linhas de abate e dias específicos para atender suas lojas com a carne vinda apenas de fazendas previamente selecionadas. Porém, ao não divulgarem publicamente os resultados de suas auditorias sobre essa prática, as redes perdem a oportunidade de que esses dados sejam considerados na análise do dPaP. “Nossa metodologia se baseia no escaneamento de código sanitário do produto dentro dos supermercados. Então, associamos todas as fazendas fornecedoras daquele frigorífico à rede varejista onde ele está sendo vendido”, explica a coordenadora.
Relevância do bioma – Segundo Dari, a adesão das empresas aos protocolos de monitoramento e às políticas de compra com critérios socioambientais é uma obrigação vital para o Cerrado brasileiro, por vários fatores. “Apesar do desmatamento ter diminuído no ano passado, o bioma perdeu, em 2023, a maior área de vegetação nativa dos últimos dez anos, equivalente ao Distrito Federal, grande parte motivada pela conversão de terras em pastagens”, diz. “Isso traz impactos diretos sobre a biodiversidade, o estoque de carbono e os recursos hídricos do país.”
Oito das doze nascentes das principais bacias hidrográficas do Brasil estão no Cerrado, mas apenas 7,5% do bioma está protegido por áreas públicas de conservação. Mesmo assim, o Cerrado abriga o maior rebanho bovino do País, respondendo por mais de um quarto dos animais abatidos, com mais de 225 frigoríficos em operação no local e outros 68 nas bordas, informa o relatório.
A maior parte deles revende para todas as regiões, com o Sudeste concentrando a maior parte do consumo (estimativa de 44% a 52% da carne originária do Cerrado), seguido pelo Nordeste, Sul e Centro-Oeste. O estudo do dPaP também lembra que, só em 2024, o bioma foi responsável por 25% dos casos de trabalho análogo à escravidão registrados em propriedades ligadas à pecuária.
O gráfico a seguir mostra o destino da carne bovina produzida no Cerrado – e os abatedouros que compram gado do bioma:
Longe da meta
Quando o “Protocolo de Monitoramento Voluntário de Fornecedores de Gado” foi lançado para o Cerrado, esperava-se uma adesão maior da cadeia da carne à proposta de um padrão de monitoramento socioambiental na região visando o bloqueio de fornecedores em áreas com desmatamento após 2020, ou com registros como: mão de obra em condições indignas de trabalho; embargos ambientais e sobreposição de áreas protegidas.
Segundo o relatório, se todos os membros da Abiec — a associação que representa 98% das exportações de carne bovina do Brasil — adotassem esse compromisso, a cobertura poderia atingir 65,5% do abate e quase 68% de área relacionada ao desmatamento.
O relatório do dPaP também alerta para outro problema comum em quase todas as práticas de monitoramento: a exclusão dos fornecedores indiretos. “Como o gado costuma passar por várias fazendas até o abate — da cria à engorda —, o rastreamento apenas da última propriedade acaba ocultando a origem de parte significativa do desmatamento”, explica Dari. Ela acrescenta que muitas empresas têm a falsa percepção de conformidade, pois se relacionam com produtores cujo atestado de regularidade vem do PRODES Amazônia e não do PRODES Cerrado, aproveitando o fato de terem parte da pastagem dentro da Amazônia Legal. O PRODES é um projeto de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a partir de imagens de satélite.
Propostas
O relatório do projeto Do Pasto ao Prato propõe um conjunto de ações para fortalecer a governança sobre a cadeia da carne no Cerrado. Entre elas:
● a ampliação do uso do PRODES Cerrado para assegurar o monitoramento das compras responsáveis de gado no bioma; a exigência de rastreabilidade de fornecedores indiretos;
● a definição de processos de auditoria independentes;
● a transparência nos dados de compras dos frigoríficos e varejistas;
● a divulgação pública obrigatória das Guias de Trânsito Animal (GTAs);
● um cronograma para as instituições financeiras e os membros de associações de classe, como Abiec e Abras, adotarem o Protocolo do Cerrado ou critérios mínimos de proteção ambiental e social.
Acesse aqui a íntegra do relatório “Radiografia da Pecuária do Cerrado”.
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Sobre Do Pasto ao Prato (dPaP) – O ‘Do Pasto ao Prato’ (dPaP) é uma iniciativa não governamental e sem fins lucrativos, engajada em conectar sociedade e ciência para tornar o setor da carne no Brasil mais transparente e sustentável. O aplicativo dPaP é usado por cidadãos em todo Brasil para consultar indicadores socioambientais e permite ao consumidor brasileiro identificar a origem da carne bovina disponível no mercado, contribuindo para escolhas mais conscientes no momento da compra. A iniciativa é formada pela UCLouvain, Stockholm Environment Institute e Global Canopy, e ainda conta com vários parceiros.
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